segunda-feira, 16 de junho de 2008

Uma linha torta no tecido da manhã

Sempre tive um dificuldade enorme de estudar prosa. Se me mandarem analisar um conto do Rosa, vou ficar ali, na frente do livro, estupefeito – sem um passo de palavra. Meus caminhos são sempre pelas letras poéticas, é ali que me divirto reconstruindo nos alicerces mais abastados.

Mas acabei alcançando alguma coisa de diferente quando encontrei essa prosa que, insisto depois de vocês falarem em poema (como falarão), tem enredo, personagem, narrador, tempo e espaço – e tudo isso debaixo de luzes espantosamente inebriantes. A grande questão é a fusão deles em cada linha:

O fruto
"Eu quero que esse momento dure a vida inteira
e além da vida ainda de manhã no outro dia"
Arnaldo Antunes
Seu gosto de maçã prosseguia, contudo maçãs não permanecem inteiras depois que se morde. Você, apesar de resistente a mordidas, se derrete em temperatura ambiente. Agora o gosto é de carne, carne viva, corpo vivo, carne sua, desde a sala até o céu, até onde vai o pensamento, sobre a grama do nosso jardim.Sob a luz do sol, o cheiro era de maçã, era de aconchego, era quente, era bom. Era como você, com você, por você.O som que dilacerava o silêncio era da sua voz, fossem palavras belas ou não. Palavras de maçã enlaçavam-me num beijo fatal.
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De frente pro desafio, proponho:
- o narrador é uma primeira pessoa se dirigindo a nós, segunda;
- somos personagens, ora, de um monólogo;
- o espaço é alguma coisa em torno da maçã;
- o tempo é o (do) enredo, e o enredo é o tempo.

O fruto, pois, é o tempo furtado do Arnaldo: mas que amolece na boca de quem nos fala. Não satisfeito com a maçã, signo-mor desse torvelinho, vamos nós pra boca do sujeito; irônica, a mordida, agora, se desfaz em beijo – um assim, fatal, como todo fim de prosa, numa manhã que se quer maçã: concreta, barroca, abstrata.

Frutífera essa ruptura no silêncio maluco da prosa contemporânea – um lugar cheio de músicas e bagunças, mas sem som. Afinal, no liquidificador, tudo são palavras de maçã.
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Era como você.
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Fiquemos felizes, sim, sendo deglutidos.
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(Principlamente no, pra dizer o mínimo, bacana http://hannebaby.blogspot.com/ - o blog da Hanne.)

7 comentários:

Nelson Martinelli Filho disse...

Sinto um forte cheiro de maça.

Nelson Martinelli Filho disse...

Ps: só faltou o link da postagem original.

Hanne Mendes disse...

"numa manhã que se quer maçã: concreta, barroca, abstrata" e que dure a vida inteira e mais um dia pela manhã.

Muito boa a análise, Lucas, apesar de o texto original ser meio confuso. rs.

Obrigada.

P.S.: Nelson, eu nem tinha pensado na peça! rs. Agora vou ficar lembrando.

Zzr disse...

Nunca me dei bem com a prosa. Analisá-la então, nem se fale...

Interessante toda a idéia do blog, assim como a última crítica. Quando li o texto pela primeira vez (ainda no blog da autora), pude perceber meus sentidos aguçados de alguma forma. E, quanto mais se lê, mais esse aroma de maçã nos envolve...

Parabéns à crítica e, mais uma vez, à autora.

Mésmero disse...

Essa maçã me lembra o pecado original,
no meio tem a oferenda da carne viva que culmina no beijo fatal.

Josely Bittencourt disse...

Prosa, poema ou maçã, só sei dizer q isso tudo é muito bom!

Hanne de parabéns e o Lucas tb!

Anônimo disse...

Bacana a idéia, legal a prática.